Por razões que se desconhecem, o Presidente Cavaco Silva decidiu esconder-se em Belém enquanto o FMI "ocupa" o país.
Mesmo o menos patriota dos portugueses arrisca-se a andar incomodado com a sucessão de conselhos, ralhetes, chamadas de atenção acintosas, etc., que os responsáveis europeus derramam sobre Portugal desde que o governo se viu obrigado a pedir a intervenção do FMI. A coisa não é bonita de se ver. No sábado, a reprimenda de Olli Rehn, o comissário europeu responsável pelas Finanças, ao Presidente da República foi de pôr os cabelos em pé. É verdade que Cavaco Silva pediu uma quadratura do círculo inexistente nos mecanismos de resgate financeiro - o tal empréstimo intercalar que a Europa não quer inventar à medida do que precisávamos, com eleições legislativas dentro de mês e meio. Mas tudo isto tem um travo de humilhação que dispensávamos.
Com o céu a cair-nos em cima da cabeça, é deveras surpreendente o absoluto silêncio do Presidente da República. A guerra aberta entre o governo e o PSD é essencial, do ponto de vista táctico, para fingir que existe qualquer hipótese de tanto um como o outro aparecerem com um programa que não seja comum nas eleições. Mas é difícil que sirva para alguma coisa, transformada que está numa telenovela que acrescenta ridículo à tragédia do recurso ao FMI.
É verdade que o Presidente da República não tem quaisquer poderes para "governar", seja de que maneira for. Mas, presidindo a um país com um governo em gestão a negociar com o FMI, exigia-se que não se remetesse exclusivamente aos bastidores. Foi o que fez durante as negociações para o Orçamento do Estado, quando praticamente todos os dias na praça pública insistia na urgência de o PSD viabilizar o documento. Por razões que se desconhecem, Cavaco decidiu esconder-se em Belém enquanto o FMI "ocupava" o país. E esse súbito desaparecimento de cena, como o i dá conta nesta edição, está a irritar inclusivamente os cavaquistas mais empenhados.
Com a doçura que se lhe reconhece, o professor Adriano Moreira disse, em entrevista à Rádio Renascença, que Cavaco Silva tinha uma leitura muito estrita dos poderes constitucionais, contrapondo os exemplos de Mário Soares e até de Jorge Sampaio como antigos chefes de Estado que não se incomodavam com exercer o mandato com impacto público. Nesta edição do i, Francisco Van Zeller vai mais longe e afirma que "o Presidente não está a trabalhar eficazmente". Mesmo sem quaisquer poderes executivos, exigia-se do Presidente que ao menos tivesse uma actuação de "consolo nacional", à imagem e semelhança dos seus poderes simbólicos. Mas nem isso.
Cavaco Silva é, desde 1985, um mestre na gestão da sua carreira política e a verdade é que isso sempre lhe correu da melhor maneira. Mas as comunicações ao país sobre escutas a Belém que não existiram, o intraduzível Estatuto Político-Administrativo dos Açores ou o não veto ao casamento gay parecem, à luz do momento presente, intervenções vindas do outro mundo.
Texto de Ana Sá Lopes
in "Jornal i", 14 Abril 2011
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