quarta-feira, 16 de junho de 2010

Simplicidade e bom senso

Passos Coelho quer que o povo português seja tão flexível como o chinês.


Finalmente o Presidente da República apresentou uma solução económica concreta aos portugueses: façam férias dentro do país. Como o ministro Vieira da Silva apareceu logo de seguida a desvalorizar o conselho, Cavaco Silva explicou: "Férias passadas no estrangeiro são importações e aumentam a dívida externa portuguesa". A mim, o alvitre presidencial pareceu-me simples e sensato, e a simplicidade e o bom senso são duas coisas que, nesta fase difícil, me parecem tão imprescindíveis como a manutenção do IVA no cabaz básico de sobrevivência.

Um dos argumentos centrais da campanha de Cavaco Silva nas últimas presidenciais era o do valor da sua sabedoria financeira para ajudar o país. Cheguei a ter a sensação de que até José Sócrates sonhava secretamente com essa preciosa ajuda. A mim, que sou de Letras, parecia-me estranho que alguém que, enquanto primeiro-ministro, desperdiçara ou deixara desperdiçar lautamente os rios de dinheiro europeus postos à disposição do crescimento de Portugal, fosse de repente capaz de, em época de vacas anorécticas, salvar a nação. Mas, na dúvida, prefiro acreditar na capacidade de recuperação ou de aprendizagem das pessoas - e, nesses idos de há cinco anos, ainda acreditava que, no fundo, no fundo, os políticos profissionais seriam pessoas como as outras, capazes de, quando necessário, colocarem seriamente o bem comum à frente dos seus interesses pessoais ou de grupo. Porém, depois de eleito, o Presidente e o seu partido decidiram sublinhar o contrário: que o Presidente é a alma da nação, mas não governa. A questão é que em tempo de guerra não se limpam almas: todas têm que governar, ou que contribuir para o governo comum. Concordarão que é necessária muita força anímica para sustentar uma família com menos de mil euros por mês - e há muitos milhares de famílias portuguesas que o fazem.

É melhor ter um Presidente que arregaça as mangas e se põe a fazer contas do que um ministro das Finanças que, a bem da pátria, se propõe dar um pontapé na Constituição. Teixeira dos Santos foi ao Parlamento dizer que o princípio da defesa da "economia, do emprego e do futuro do país" é um valor que "se sobrepõe ao princípio da não retroactividade das medidas fiscais" - princípio esse inscrito na Lei Fundamental que nos rege. O CDS-PP e o Bloco de Esquerda apresentaram propostas para impedir esta inconstitucionalidade, que não incomoda o PSD - o que preocupa Passos Coelho são as leis do trabalho, que ainda não tornaram o bom povo português tão flexível como o chinês.

Não sei se estão lembrados de outros momentos históricos, em Portugal e no mundo, em que os pilares e princípios básicos foram postos entre parêntesis, supostamente em prol de uma 'salvação' qualquer. Se não estão lembrados, resumo-vos em três palavras: nunca correu bem. A moda de criar um clima de pânico social e de afunilamento de soluções também já deu o que tinha a dar - na Alemanha deu Hitler, na União Soviética deu Estaline, entre nós, mais modestamente, deu Salazar. Isto é: a história já provou que o terror, a surdez, a indicação de soluções finais e de caminhos sem alternativa não contribui em nada para o progresso nem para o sucesso - a não ser, eventualmente, da indústria funerária, mas essa não precisa de incentivos.

As grandes mudanças fazem-se através de pequenos e decisivos passos. Os economistas e os banqueiros, em geral, desdenham os cortes no desperdício que representam uma mudança de hábitos. Para eles é tudo macro, inefável e, em última análise, incontrolável - os discursos dos economistas são melancólicos e vagos como poemas, mas sem a beleza da forma como mais-valia.

Ainda na passada semana um afamado banqueiro definia, aqui no Expresso, os aviões particulares como "instrumentos de trabalho", os prémios chorudos como amendoins (sem os quais os cérebros mais desenvolvidos fugirão para outras árvores, dizia), os cortes nos salários dos altos cargos como irrelevantes. Só a sobrecarga fiscal sobre os que vivem com dificuldades e a cópia do desgraçado modelo laboral chinês parecem eficazes aos grandes senhores e aos fracos políticos que continuam a caber-nos em sorte. Sem linha de horizonte que se veja.

Texto publicado na edição da "Única", 12 Junho 2010

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