O primeiro-ministro, José Sócrates, tem uma coisa que se chama "o Gabinete". Nada de errado em ter um Gabinete, embora eu nunca tenha tido um, como a maioria dos seres vivos. Suponho que um primeiro-ministro precisa muito de ter um Gabinete, um staff, um grupo de pessoas inteligentes e informadas que o auxiliem e o protejam de gestos destemperados ou de frases impensadas. Um grupo de pessoas que faça, como se diz agora, o seu spinning. Um spinning feito com uma mistura de respeito e de ódio aos jornalistas; hoje, a maioria dos gabinetes não presta assistência a decisões ou pensamentos, presta assistência à imagem. A imagem é tudo. Quem trabalha num Gabinete tem responsabilidades acrescidas de preservação da imagem do dono do Gabinete. O Gabinete é pago por nós, por isso acrescento que também me reservo o direito de querer, de exigir, que o Gabinete funcione sobre rodas. E que o primeiro-ministro não faça figuras tristes. É triste fazer figuras tristes.
Eu, como José Sócrates, também gostava de conhecer Chico Buarque. Quem não gostaria? E como jornalista, tive a sorte de o conhecer. Nunca fui a casa do Chico. Tirando breves interlúdios propiciados pela profissão, nunca mais vi o Chico excepto onde as pessoas o vêem, brilhando à distância. Se eu fosse primeira-ministra e estivesse no Brasil, no grande Rio de Janeiro, e quisesse conhecer o Chico, que é que eu fazia? Não, não metia uma cunha ao Lula. Usava o Gabinete. Caros meninos e meninas do Gabinete, podem fazer o favor de me arranjar um encontro com o Chico? Onde ele quiser e às horas que quiser. Digam-lhe que não é a primeira-ministra de Portugal, é uma fã. E mantenham a imprensa longe disto. E o Gabinete tratava do assunto em silêncio. O Chico não é difícil nem vedeta, é mais para o tímido, e gosta que gostem dos livros dele. De modo que se eu fosse primeira-ministra e fã do Chico tinha pelo menos lido um livro dele, que os livros até são bons. E não são custosos de ler. Ou então, o Gabinete, caso fosse competente, tratava de me dar um briefing sobre a obra do Chico, para evitar a calinada. Eu, com modéstia e admiração, lá me transportaria a casa do Chico sem testemunhas nem comunicados nem brilhantinas caso o Chico me convidasse. Se o Gabinete se portasse bem, levaria comigo um dos meninos e meninas como recompensa.
Mandava vir o carro, punha um fatinho de fim-de-semana. E depois calava-me, com o autógrafo na mão e a caipirinha amena. Um encontro privado é um encontro privado. O que não faria era espalhar, através do Gabinete, o meu encontro com Chico. Um homem é ele e a sua circunstância e o cargo de primeiro-ministro, circunstancial, não autoriza a tratar os outros como subalternos. Tratando-se do Chico, que não se põe em bicos de pés, o Gabinete deveria ter entendido que a ideia de levar um fotógrafo para um encontro entre o ídolo e o fã é mortal. Sr. primeiro-ministro: compre uma câmara digital. De modo que as aparências dizem que temos um primeiro-ministro que se aproveita das pessoas que admira para se sobrevalorizar. Negócio meio chato, diriam os nossos irmãos.
A notícia sai, com pompa e circunstância, "transmitida" pelo Gabinete. Chico pede para se encontrar com Sócrates. Qualquer pessoa que conheça o Chico acha isto esquisito. Se uma dessas pessoas perguntar ao Chico, isto é verdade?, o que acontece? O Chico diz a verdade: o cara é que pediu o encontro. Ele é que veio na minha casa. E temos um Sócrates chamuscado. E uma sensação de déjà vu. Figo, lembram-se? Mais um dos heróis de juventude.
O Gabinete disse que se tinha enganado. Imaginemos que este Gabinete de idiotas que se enganam sobre coisas destas, a verdade, a honra do primeiro-ministro, etc., se enganou mesmo. Que faço eu se for a primeira-ministra? Ponho na rua os idiotas que se enganaram na "transmissão" da notícia e arranjo outro Gabinete melhor, que não me cubra de vergonha.
Até ao momento, o Gabinete continua de pé, disponível para mais idiotices. E se... E se a história é outra? E se o próprio primeiro-ministro não tivesse escrúpulos em usar as pessoas para se pôr em bicos de pés? Aí, seria bom que ele tivesse um Gabinete que o convencesse a não usar tais tácticas. Que lhe dissesse: sr. primeiro-ministro, não se ponha a jeito, isso não são maneiras. O Chico não merece. Um dos heróis da sua juventude!
Eu não acredito que o primeiro-ministro tivesse perpetrado a coisa. Parece-me, concluindo, que o Gabinete não serve. Um grupo de serviçais ansiosos de agradar ao "chefe" (onde é que eu já vi isto?) não é um Gabinete, é um desperdício de dinheiro. Sr. primeiro-ministro, dê um exemplo de austeridade e desfaça-se desse Gabinete. Precisam de demonstrações de afecto? Compre-lhes um cão.
Texto publicado na edição da "Única", 5 de Junho de 2010
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